se tornamos a evocar a alma é de morte que estamos.
o que não encaixa se desdobra.
.
como desculpa
pisar sobre pisos
rir sobre risos
amar sobre outros
intuir sobre coisas
por acontecer.
o bom é que aqui eu não devo explicações. um quase não-compromisso. a não ser com a própria vontade. um compromisso original e de cobrança sutil e impositiva. e isso, para divagar sobre sentimentos, que de nada adianta falar, se não senti-los. mais um discurso repetitivo. da sinceridade. espontaneidade. naturalidade. e, agora, como nunca, a ingenuidade. não a ingenuidade tola. alienada. mas a que permite desarmar preconceitos e perceber os momentos.
um viajante precisa ter sensibilidade. e precisa da ingenuidade mesclada com humildade para ter a segurança de afirmar: "o mundo sou eu". sendo assim, o mundo deve ainda se conhecer. pois se renova a cada interpretação e troca. o mundo ferve e não tem eu. ele é eu. e quantos eus forem necessários. o eu, tadinho, se enaltece demais nas suas limitações e não entende que ele só pode ser tudo. o ego é uma titica perto do mundo. e o ego não sou eu. é só uma punhetinha do eu. sondando esse eu, percebo sentimentos que o rondam e o constituem como natureza do universo. sentimento que é coisa que não se controla. e afeto é fragmentação de sentimento. finalmente, o ponto: afeto deve ser distribuído. compartilhado. somente assim, se perpetua no efêmero. e o viajante carrega isso para a vida cotidiana.
nas relações que mantemos na nossa pequeninice, temos afeto. um mundinho onde procuramos massagear as afinidades. desafinidades, quando nos convém. precisamos daquele afeto do outro, como uma necessidade de vida. depositamos em poucas pessoas. assinamos tratados de confiança. fazemos política com afeto. e assim formamos uma coletividade vulnerável. uma cadeia de prazer limitada e dependente. por isso, viajar é estudar vida.
relato pós viagens:
e, enfim, o afeto - e como ele se espalha pelas andanças da vida. nos mundos de eus alheios. estórias simples que não devem nada ao interlocutor. que são porque acontecem. e quando contadas, se esvaem como o afeto. pra isso, não há tempo preciso. é só momento.
gritei livre por felicidade. pude finalmente ouvi-la em resposta. abracei o vento e entorpeci meu corpo. o momento faz o afeto. faz as pessoas. faz o ar. e só com maturidade que pude ser ingênuo a ponto de fragmentar-me em certezas. e certezas que me mostraram muito. os inchaços. a efervescência. a vibração de todas as não-matérias latejantes...]
tudo soa tão subjetivo que se perde em tentativas de explicações superficiais. se perde porque não tem eixo.
é certeza em vapor.
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dois clássicos para exemplificação:
Vinícius de Moraes:
"que seja eterno enquanto dure"
Baden Powell:
"na vida não se estuda pra aprender; é preciso viver"
Fernando Pessoa:
"navegar é preciso, viver não é preciso"
Quero dissolver no ar,
poluir o incerto,
experimentar ozônio,
vagar pelos hemisférios,
encontrar o nada esperto,
seco, a me esperar.
Quero fazer do meu ser
o mais desprezível notado,
despertar nos sonhos,
em forma de antologias,
o prazer encarcerado.
Depois de muito viajar,
espero assim voltar,
poento,
com presença em fragmento.
05/03/2007
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Insistentemente, o telefone tocava, insistentemente, mente... Até parar; voltava a tocar. Eu não fazia a menor questão de atendê-lo, não conseguia perceber a importância daquele soar repetitivo, a relevância do ser do outro lado linha, talvez do mundo – vá passear, comer coxinha de frango estragada e ligar para um médico! Do quarto, podia sentir a vibração do eco do toque, uma matraca que pesava no ar, segunda-feira, onze horas da noite. Eu, nu, respingava sobre o lençol branco semi-novo, a mudança havia sido recente e tudo ainda cheirava a novo, mesmo as caixas velhas de papelão; uma vida nova com cheiro de mofo puro: a sensação da renovação. Estava ainda sem luz, mas o fogo é antecedente ao homem inteligente que inventou a vela, e a sombra assim se fazia na parede, volumosa, incerta, deformada pelo vento, fruto de estudo de uma antiga caverna – meu quarto era uma dessas, só que iluminada, estilo uga-uga. Mamãe tentara me ensinar a meditar antes de sua trágica morte morrida de velhice na semana passada, eu aprendi a olhar para a parede e só, acredito que, durante anos, meditei muito – meditava naquele instante, e por isso não poderia, nem conseguiria, responder àquela chamada, amada... O pernilongo me fazia companhia e zumbia em meus ouvidos – seria possível o silêncio absoluto? Deus se fazia presente, pois nunca vira dois, ou mais, desses insetos juntos e jamais conseguira matá-los – já nem tento mais, mesmo não sendo cristão, acho que é uma questão de respeito; que haja, então, uma relação de reciprocidade, não desejo a sua onipresença, acabei de me mudar! Tentava atingir um estágio de pureza alcançado somente no início do ciclo, um estado tão complexo atingido tão facilmente – por isso que a vida deve ser sem vida, ida... Dez minutos sem que o ruído parasse, feito martelo no prego, ego... Sequei, mas o tecido permanecia úmido. Conforme as idéias pairavam, quiçá perdidas, a cera era derretida – fontes esgotáveis são consumidas –, ambas reféns de um vento outorgado, que, no caso, ajudava o trabalho da mente e agravava a inconstância do fogo. Em poucos segundos de quietude era possível ouvir somente o nada, ou seja, um monte de coisas – um mantra é um nada –, propiciando um pensamento repleto de nada, a infância, o amanhã de repente, pente... O copo quebrou, me sentia novamente no Japão, compactado.
Levantei, pisava nos esparramados cacos de vidro; tirei o telefone do gancho. Em tom avermelhado, o rastro desenhava o caminho de volta ao recanto; nas paredes ao lado, esquecidas imagens de santos, pragas de outras rotinas – um passeio pela brisa ousada. Era dor, por isso era vermelho – o amor com dor, não sendo assim, não o seria. O trajeto de labirinto de concreto – até demais – se arrastava, junto aos meus pés não mais virgens – Oh Maria! –, ajoelhei-me e desdobrei-me, pois, deitei-me. O chão acalantava meus prazeres masoquistas, possuía-me frio e denso – como a brisa ousada –, o momento exato de lamber a poeira não menos insalubre que eu – um poço de osso dengoso, cinza podre. O que uma droga não era possível de arcar, meu manequim arcava, uma droga comparável à vida – uma alucinógena que, uma vez obtida, tendenciosa é perdida, depois sim esquecida. Escorria, de meu ouvido, um líquido com resquício de sabão, química juvenil; a alma livrava-se da mente amarelada, depois de frita, por pinocitose inversa. Em seguida, viria a clara, por fagocitose inversa, exalando o grandioso restante nada; as cores zombavam de mim, enquanto eu me derretia – esse é o perigo do fogo.
Mamãe, mamãe! Nessas horas é só mamãe, cabeça-mamãe, papai-mamãe, socorro-mamãe; morrera-mamãe! Bastava ter desviado o olhar para a direita e veria mamãe deitada à minha diagonal, esticando o olhar, observando a degradação de sua continuação – fagocitose completa – deixando-me ser uma nova era, indesejadamente, uma era que arranca todos os pêlos, que se suicida como gesto de morte chocante; enquanto a simplicidade suficiente seria comer, dormir e pensar – eis a questão. Não desviei o olhar, pois praticava o mimetismo indolor, entretanto bege; seria mais fácil assim pincelar o que desejasse ser – a renovação é uma bosta igual ao que a antecede.
Mamãe começava a chamar, o tempo insistia em conspirar, a vida permanecia a clamar, o telefone, fora do gancho, tornava a ruir, ir... Todos à mim. Grudei um ouvido de cada vez na parede do poço e lá os deixei, os olhos grudei em mim, a boca costurei, os sentidos expirei pelo nariz.
Em vão, mergulhei de cara no pensamento.
Há um consenso comum entorno de um pensamento sobre o “ser” como o ego indivisível, e propor uma mudança de auto-existência parece absurdo. É como se o fato de o rótulo que os pais deram e certificaram em documento quando nascido definisse o que a pessoa virá a ser. É claro que muitos percebem as ditas “fases da vida” em que se está mais eufórico, com projetos, ou mais perceptivos, estudioso, ou mais melancólico, sem muita perspectiva; mas isso também é criado pelo senso comum, uma pessoa normal deve passar por tais fases. O que está em questão não são as fases comportamentais momentâneas, mas a possibilidade de desconstrução e reconstrução profunda de si, já que a mente humana é fantasiosa e mágica, uma vez que ela consegue imaginar tudo o que há e deseja tudo o que não há. A ordem da mente humana é similar à da natureza, é caótica, construtiva e destrutiva. Já a ordem do mundo, criada por essa mente e guiada pelos homens que as acompanham, é feita através de uma linguagem em comum, o que pressupõe uma limitação de entendimento, sendo esta aceita culturalmente, oriunda de uma interpretação. Da mesma forma se dá o autoconhecimento das pessoas ao longo da vida, de suas próprias culturas, educação e absorção. Há uma grande necessidade de algo que possa guiar o entendimento das coisas; está certo, a linguagem é fantástica por conseguir alcançar de alguma forma o saber das coisas, ms ela de fato não é o saber, é uma interpretação do mesmo; o saber é visceral e incontrolável.
Quando Fernando Pessoa afirma: “o mundo sou eu”, se expande ao seu nível máximo de existência do ser, pois admite qualquer possibilidade de personalidade, de situação mundana ou não. Ele sabe que a limitação é uma questão de controle de si mesmo, de saber o que está sendo agora, o que acontece ao redor, sendo que todo esse conhecimento é vago e superficial, à medida que tem consciência de sua restrição humana. Sendo assim, sentiu-se na necessidade de assumir vários heterônimos devido a sua inquietação catártica e conseqüente desconstrução da própria personalidade.
Talvez, Fernando Pessoa tenha sido o melhor (não o único) exemplo existente em vida de que a feroz busca pela ilimitação da mente como aplicação de real seja bastante potente em níveis de criação (e/ou destruição), ou seja, de transcendência. O problema é que a linguagem binária prevalece no entendimento comum da sociedade, sendo assim, a limitação pendular acaba sendo a formadora das mentes ditas pessoas humanas.