sábado, 5 de janeiro de 2008

fragmento

Insistentemente, o telefone tocava, insistentemente, mente... Até parar; voltava a tocar. Eu não fazia a menor questão de atendê-lo, não conseguia perceber a importância daquele soar repetitivo, a relevância do ser do outro lado linha, talvez do mundo – vá passear, comer coxinha de frango estragada e ligar para um médico! Do quarto, podia sentir a vibração do eco do toque, uma matraca que pesava no ar, segunda-feira, onze horas da noite. Eu, nu, respingava sobre o lençol branco semi-novo, a mudança havia sido recente e tudo ainda cheirava a novo, mesmo as caixas velhas de papelão; uma vida nova com cheiro de mofo puro: a sensação da renovação. Estava ainda sem luz, mas o fogo é antecedente ao homem inteligente que inventou a vela, e a sombra assim se fazia na parede, volumosa, incerta, deformada pelo vento, fruto de estudo de uma antiga caverna – meu quarto era uma dessas, só que iluminada, estilo uga-uga. Mamãe tentara me ensinar a meditar antes de sua trágica morte morrida de velhice na semana passada, eu aprendi a olhar para a parede e só, acredito que, durante anos, meditei muito – meditava naquele instante, e por isso não poderia, nem conseguiria, responder àquela chamada, amada... O pernilongo me fazia companhia e zumbia em meus ouvidos – seria possível o silêncio absoluto? Deus se fazia presente, pois nunca vira dois, ou mais, desses insetos juntos e jamais conseguira matá-los – já nem tento mais, mesmo não sendo cristão, acho que é uma questão de respeito; que haja, então, uma relação de reciprocidade, não desejo a sua onipresença, acabei de me mudar! Tentava atingir um estágio de pureza alcançado somente no início do ciclo, um estado tão complexo atingido tão facilmente – por isso que a vida deve ser sem vida, ida... Dez minutos sem que o ruído parasse, feito martelo no prego, ego... Sequei, mas o tecido permanecia úmido. Conforme as idéias pairavam, quiçá perdidas, a cera era derretida – fontes esgotáveis são consumidas –, ambas reféns de um vento outorgado, que, no caso, ajudava o trabalho da mente e agravava a inconstância do fogo. Em poucos segundos de quietude era possível ouvir somente o nada, ou seja, um monte de coisas – um mantra é um nada –, propiciando um pensamento repleto de nada, a infância, o amanhã de repente, pente... O copo quebrou, me sentia novamente no Japão, compactado.

Levantei, pisava nos esparramados cacos de vidro; tirei o telefone do gancho. Em tom avermelhado, o rastro desenhava o caminho de volta ao recanto; nas paredes ao lado, esquecidas imagens de santos, pragas de outras rotinas – um passeio pela brisa ousada. Era dor, por isso era vermelho – o amor com dor, não sendo assim, não o seria. O trajeto de labirinto de concreto – até demais – se arrastava, junto aos meus pés não mais virgens – Oh Maria! –, ajoelhei-me e desdobrei-me, pois, deitei-me. O chão acalantava meus prazeres masoquistas, possuía-me frio e denso – como a brisa ousada –, o momento exato de lamber a poeira não menos insalubre que eu – um poço de osso dengoso, cinza podre. O que uma droga não era possível de arcar, meu manequim arcava, uma droga comparável à vida – uma alucinógena que, uma vez obtida, tendenciosa é perdida, depois sim esquecida. Escorria, de meu ouvido, um líquido com resquício de sabão, química juvenil; a alma livrava-se da mente amarelada, depois de frita, por pinocitose inversa. Em seguida, viria a clara, por fagocitose inversa, exalando o grandioso restante nada; as cores zombavam de mim, enquanto eu me derretia – esse é o perigo do fogo.

Mamãe, mamãe! Nessas horas é só mamãe, cabeça-mamãe, papai-mamãe, socorro-mamãe; morrera-mamãe! Bastava ter desviado o olhar para a direita e veria mamãe deitada à minha diagonal, esticando o olhar, observando a degradação de sua continuação – fagocitose completa – deixando-me ser uma nova era, indesejadamente, uma era que arranca todos os pêlos, que se suicida como gesto de morte chocante; enquanto a simplicidade suficiente seria comer, dormir e pensar – eis a questão. Não desviei o olhar, pois praticava o mimetismo indolor, entretanto bege; seria mais fácil assim pincelar o que desejasse ser – a renovação é uma bosta igual ao que a antecede.

Mamãe começava a chamar, o tempo insistia em conspirar, a vida permanecia a clamar, o telefone, fora do gancho, tornava a ruir, ir... Todos à mim. Grudei um ouvido de cada vez na parede do poço e lá os deixei, os olhos grudei em mim, a boca costurei, os sentidos expirei pelo nariz.

Em vão, mergulhei de cara no pensamento.



03/06/2007